quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Maria Isaura Pereira de Queiroz e os messianismos

 

A autora se destaca por apresentar um estudo precursor nas sociologias religiosas à respeito dos messianismos, em abordagem diferenciada das de outros estudiosos que antecederam.
Até a década de 1950 os messianismos eram observados sob o prisma de patologias sociais ou surtos de fanatismos religiosos. Exemplos de estudiosos como Euclides da Cunha, Raimundo Nina Rodrigues e Rui Facó, por exemplo, enxergaram os messianismos sob esses aspectos.
Porém, Maria Isaura inaugura outra interpretação. Os analisava sob a ótica do dinamismo social (interações entre os agentes que compunham as relações sociais). Traça tipologias dos messianismos e os classifica, levando-se em conta complexidades inerentes de cada movimento messiânico. Quanto as tipologias, relaciona-os como:
a) movimentos que dizem respeito à formação de sociedades globais e que pretendem retornar à antiga organização, sendo ora de segregação, ora de agregação;
b) movimentos que dizem respeito à configuração interna de sociedades globais, ora reagindo contra processos de mudanças social, ora reagindo contra processos de anomia, e distinguindo-se em movimentos revolucionários e movimentos reformistas; e
c) movimentos que dizem respeito ao mesmo tempo à formação e configuração de sociedades globais (movimentos mistos), pretendendo a um tempo segmentá-la e subverter a estrutura hierárquica interna, constituindo movimentos revolucionários.
Além das diferenciações acima indicadas, Maria Isaura Pereira de Queiroz observa que os movimentos messiânicos estavam sempre ligados a crises de estruturas e organizações sociais e que sempre os encontramos relacionados com estruturas regidas pelo sistema de parentesco, houvesse ou não dualidade estrutural (2003, p. 330).
Um exemplo seria o movimento de Canudos, que, em decorrência da transição monarquia – república (1889), acabou gerando um vazio no consciente coletivo, pois, sem a figura do Rei (enviado de Deus), a República não oferecera nada que o substituísse. Pelo contrário, favorece o banditismo nas regiões interioranas e também o abandono dessas populações, promovendo concentração apenas nas capitais e litoral do Brasil. Esses movimentos são, portanto, fruto de instabilidades de ordem política, econômica, cultural e religiosa.
Essa obra é uma das mais completas abordagens sobre os messianismos, juntamente com o “Dicionário de Messianismos e milenarismos”, do padre e sociólogo francês Henri Desroche.

Fonte:

QUEIROZ, Maria Isaura P. de. O messianismo no Brasil e no mundo. 3ª ed. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, 2003.

Eder Silva é mestre em Teologia (PUCPR), especialista em Sociologia Política (UFPR), bacharel em Turismo (UP) e Teólogo (FCC) e blogueiro nas horas vagas. Este artigo reflete as opiniões do autor. O site não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

O Outsider em terras de cegos e velhacos oportunistas

 

                                            xilografia de Clifford Webb


“Meu amor olhe para os lados: desde crianças só lemos os quadrinhos de jornais”

(PICASSOS FALSOSQuadrinhos)

Em uma época movida por ditaduras cacofônicas, sorrateiramente reinam na cultura urbana (e por vezes, também nas suburbanas e rurais), questiono um velho ditado onde afirma-se que “em terra de cegos quem tem um olho é rei”.

Nestas linhas, apresentaremos alguns possíveis porquês de tal questionamento.

Nos deparamos com uma situação em que as liberdades individuais são sacrificadas por premissas de leis globais, ditadas por uma casta superior composta de meta-capitalistas das big techs e indústria farmacêutica que, em grande proporção, não apresentam um mínimo de conhecimento prévio ou certificação científica daquilo que promulgam; ou melhor, vomitam nas mídias, em geral. Julgam-se entidades superiores, a realeza representativa das sociedades, déspotas esclarecidos. E eu que pensava ser este último adjetivo relegado a um passado bem remoto!

Com a avalanche de vômitos despejados na arena social, tende ocorrer possíveis achatamentos nas liberdades e responsabilidades civis individuais. O Leviatã, substantivo que denota essa casta de celebridades, inflama-se, conclamando sua guerra (já com ares de vitória)!

A plebe se ajoelha e chora, clamando por misericórdia. Mesmo em meio às vozes que clamam nesse mar de cacofonias vomitadas, os outsiders, à beira do abismo, posicionam-se com os pescoços já postos na despótica guilhotina…

Aos indecisos, mornos e oportunistas de plantão, cujo codinome mais se assemelha às aves de rapina que espreitam as desgraças e tragédias cíclicas da humanidade, cabe-lhes o “silêncio lucrativo a longo prazo” (grifo nosso). A estes, que mais se assemelham aos vendilhões dos templos sagrados, em nome de um protecionismo prolixo e alienante sucateiam o que restam de responsabilidades individuais e, em nome de obrigatoriedades onde nem mesmo eles acreditam serem adequadas para sua própria proteção, lançam sua contribuição compulsória às atrocidades institucionalizadas por um estado mórbido e lascivo.

Um caso desses me ocorreu quando dava carona, com meu veículo próprio, um automóvel, a uma senhora. Eu já contava com duas pessoas, que seguiriam viagem comigo (ambas, juntamente comigo, não usavam as pandêmicas mordaças). Sequer me dei conta que estávamos sem a tal sacralizada indumentária. Conversávamos espontaneamente sobre assuntos de interesses mútuos e corriqueiros. Ao embarcar, antes de qualquer ato ou cumprimento, a tal senhora que havia me pedido um favor para trazê-la até nossa cidade de origem apregoou-nos sua reprovação instantânea: “Nossa! Vocês não estão usando máscaras? Como pode isso, hein?”

Seguiu-se breve momento de silêncio aliado a certa perplexidade… Mas eis que, com considerável paciência, tentei localizar minha máscara. Infelizmente não a encontrei. Mas ao invés, encontrei um questionamento: por que tenho que ser obrigado a usar máscaras no meu próprio veículo? 

Eu ofereci uma carona. Meu veículo não é um coletivo público ou veículo de transporte rodoviário, mas um automóvel. Tornei-me um misto de perplexo e injuriado pelas palavras dessa senhora. De modo algum eu teria coragem ou ousadia de persuadir alguém a adotar um costume desses, mesmo que insanamente preconizado pela nova ordem sanitária globalista.

É fato que, para quem acredita na eficácia de alguma dessas medidas ditadas pelo Estado Leviatã, geralmente põe-se em iminente contradição. Vejamos: se realmente essa senhora acredita que o uso de máscaras, ou a obrigatoriedade da vaChinação em massa oferecesse alguma espécie de eficácia contra a proliferação de algum tipo de virulência, porquê da preocupação com o não uso da máscara por parte de outrem? Já não estão fazendo a parte que lhes cabe, protegendo-se individualmente? Ou caberia aqui um jargão: o tal do “politicamente correto“?

Se, ademais, no quadro que tentamos esboçar por estas breves linhas possuir algum senso de realidade, então poderá haver uma meticulosa tentativa de auto-sabotagem nas liberdades e responsabilidades individuais e, consequentemente, uma crise de consciência no coletivo.    

Pois bem… diante de tal frenético zeitgeist[1] ao qual fomos circunstanciados, não se encontrou quaisquer sensibilidade crítica que melhor reinterprete esse momento, a não ser o qual, numa terra de cegos quem tem um olho é bruxo, ou ainda: um demônio rebelde e promotor de confusões; ou pior, um típico protótipo genocida, avesso ao welfare state[2].

Cabe um autoexame: até onde podemos seguir e até onde devemos criticar o stablishment, pois aqui no arraial das incertezas, onde há “um incêndio sob a chuva rala, somos iguais em desgraça”[3]. Para endossar tal situação, cito um trechinho de um dos meus livros de cabeceira, e que ofereço aos nossos inteligentinhos[4] de plantão, nossos fiscais de comportamento:

Ainda quereis ser pagos, ó virtuosos! Quereis recompensa pela virtude, céu pela terra e eternidade por vosso hoje? E agora vos irritais comigo por ensinar que não existe um tesoureiro pagador? E, em verdade, não ensino sequer que a virtude é sua própria recompensa. (…) E há também aqueles que consideram virtude dizer: ‘Virtude é necessária’; mas no fundo acreditam apenas que a polícia é necessária[5].


Publicado em 21 dez 2021.

[1] Traduzido como “espírito do tempo”.

[2] Conhecido em terras tupiniquins como “Estado de bem estar social”, onde as esmolas caem como dádivas celestiais ou dionisíacas, conforme a crença política e a subserviência a um paternalismo irresponsável e colonialista.

[3] Alusão à canção de CAZUZA, intitulada Blues da Piedade.

[4] A interpretação desse termo remete ao exposto pelo filósofo tupiniquim Luiz Felipe Pondé, a uma casta que também é vista como “os politicamente corretos”, muito vista nas nossas ruas e vizinhanças.

[5] Fragmento retirado do capítulo Os virtuosos, de Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra, Companhia das Letras, 2011, pp. 89-91.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

 


MACHADO DE ASSIS – Adão & Eva



A panelinha, almoço de escritores e artistas no Hotel Rio Branco, dos “festivos ágapes”, criado por M.A. em 1901. De pé: Rodolfo Amoedo, Arthur Azevedo, Ingles de Sousa, Olavo Bilac, José Veríssimo, João Carneiro de Sousa Bandeira, Filinto de Almeida, Guimarães Passos, Valentim Magalhães, Rodolfo Bernardelli, Rodrigo Octavio, Afrânio Peixoto. Sentados: João Ribeiro, Machado de Assis, Lúcio de Mendonça e Silva Ramos. 


Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas.
Rezaria seus versos, os mais belos,
Desses que desde a infância me embalaram
E quem me dera que alguns fossem meus!
        Porque a poesia purifica a alma
... e um belo poema – ainda que de Deus se aparte – um belo poema sempre leva a Deus!

                                                                                             MARIO QUINTANA


O escritor fluminense Machado de Assis, ao lado de Eça de Queiroz, por muitos é considerado como o melhor escritor de língua portuguesa do século XIX. Iniciou sua trajetória como contista, seu primeiro texto data de 6 de janeiro de 1855 (cf. ANTUNES & MOTTA, 2008, p. 33). Em 1858 publica “Três tesouros perdidos”, avançando sua produção literária como poeta (“Crisálidas” e “Falenas”), publicadas em 1864 e 1870, respectivamente.

 Representou-se também como dramaturgo, produzindo peças teatrais na antiga capital da República, Rio de Janeiro, e também como autor de romances, crônicas, críticas literárias, entre outras modalidades de produção cultural relacionadas às letras e oratória.

Considerado como pertencente a última geração da escola do romantismo no Brasil, foi o responsável por inaugurar uma outra escola literária brasileira: o realismo, sendo este caracterizado, sobretudo, por aspectos como a “crítica social”, dotada de maior ousadia em relação a composição de temas como escravidão, burguesia, transição política, casamento, “desteificação do mundo”[1], por exemplo.

Entretanto, o bruxo do Cosme Velho (apelido dado por alguns moradores do bairro onde residia o autor nos últimos anos), fugia a algumas das características desse gênero literário (Realismo), evitando o determinismo e o cientificismo, por exemplo; inclusive tecendo críticas a estes fenômenos sociais latentes e em voga naquela época, também denominada de “mundo tardomoderno” (CONCEIÇÃO, 2013, p. 29).

Construindo seus personagens ao redor de dilemas universais, complexidades locais e fenômenos históricos e de rupturas na ordem estabelecida (stablishment), buscou envolver e aguçar o leitor a ampliar sua visão ética, estética e psicológica, possibilitando-lhes o “alcance caleidoscópico das realidades múltiplas[2].

Principalmente nas obras de sua fase ligadas ao período do realismo, podemos encontrar elementos que remetem a construção literária caracterizada por metáforas, sendo que a intencionalidade dos efeitos se voltavam mais para aspectos fenomenológicos do que para a construção de realidades últimas das circunstâncias abordadas.

Neste sentido, visando facilitar a compreensão desta característica em suas obras, incluindo-se o conto “Adão & Eva”, sinalizamos o conceito de “metáfora viva” (grifo nosso) elaborada pelo filósofo francês Paul Ricoeur[3]. Observamos no enredo deste conto um Machado de Assis preocupado com a criatividade da linguagem e seu alcance para uma realidade fenomenológica, ou seja, uma realidade mais relacionada à experiência e a uma noção de percepção criativa e espontânea das vivências do que para uma realidade conceitual e ideológica, estabelecedora de dogmas e fins dotados de juízos de valor.

Neste ponto, quando refletimos sobre a metáfora viva, a literatura passa a equivaler-se de novas funcionalidades, como as ressignificações adaptáveis às múltiplas percepções dos leitores, quando imergidos na complexidade figurativa dos personagens machadianos. Assim, a “obra literária passa a ter um mundo autônomo” (CONCEIÇÃO, 2013, p. 22), uma vida própria que rompe uma antiguidade de compreensão aristotélica pautada nos processos “miméticos” (grifo nosso), ou seja, em experiências comparadas com outras vividas ou imaginadas.

E aqui podemos observar a conjunção deste conceito, a saber: a metáfora viva, dentro do contexto do conto “Adão & Eva”, que traz novas significações mesmo dentro do próprio enredo, tendo em vista que o autor leva-nos a repensar o sentido essencial do texto, desconstruindo a nossa direção, que tende se voltar para a discussão envolvendo a dogmática cristã; pelo contrário, aqui apresenta a beleza textual criativa ao nos fazer observar, mesmo que subliminarmente, um contexto bem distinto: a expectativa por saborear “o doce”, em detrimento aos apelos retóricos narrados ao longo do conto. Saborear o doce, para o autor, recebe nitidamente ares de um protagonismo, mesmo contendo poucas linhas no texto. O doce é “per se”, e se transforma distintamente ontológico, que existe, independentemente de conjecturas humanamente frágeis, formulações irresponsavelmente solidificadas pela natureza de uma historicidade débil nas reinterpretações sofridas.

Inferimos, portanto, que

 

há uma subordinação do aspecto semântico do símbolo em relação à metáfora. Porém, só o símbolo é capaz de possuir uma região não-verbal. Se esta subordinação é de fato possível, cabe-nos dizer que há uma cúmplice relação entre metáforas e símbolos. Sendo as metáforas a superfície linguística dos símbolos e ainda uma inovação discursiva [...] poderemos também dizer que a elucidação de um novo sentido de um texto literário operado pela atuação metafórica pode promover um processo de equivalência entre o sentido manifesto e as profundidades simbólicas de nossa existência (grifo nosso). (RICOEUR, 2000, p. 80 apud CONCEIÇÃO, 2013, p. 23-24)

 

Ainda, poderíamos sinalizar essa questão, a saber: sobre a linguística dos símbolos, apontando para realidades “encobertas” (grifo nosso), mas que podem se tornar acessíveis mediante uma dimensão não-verbal, supostamente manifestada pela metáfora, diante da compreensão por Paul Tillich[4], que expõe sua análise, pautando-se que o símbolo é devedor a “noção de história [...] emergem e desaparecem de acordo com épocas” (ibid, p. 25). Compete-nos saber que a época em que foi publicado o conto “Adão & Eva” contextualizava com uma ambientação influenciada pelo ceticismo oriundo de um racionalismo filosófico, bem como teorias ligadas a um darwinismo social, até mesmo por parte de ícones do pensamento científico brasileiro, como o caso das interpretações euclideanas[5] acerca de fenômenos de messianismos, revoltas e insatisfações provocadas por rupturas como o advento da República, entre outros.

As confluências do nosso contista às percepções paralelas de Paul Ricoeur e Paul Tillich leva-nos compreender, mesmo que parcialmente, a complexidade de sua narrativa, quando apresenta uma temática polêmica e, ao invés de sugerir alguma projeção conclusiva acerca das ideias alocadas, leva-nos a um desfecho distinto daquele aguardado pela maioria dos leitores, ao longo do conteúdo abrangente no conto.

 Deste modo,

 

torna-se “possível compreender que a suspensão de uma referência de primeiro nível, que é estabelecida por uma obra literária implica o estabelecimento de uma referência de segundo nível como pressuposto de criação de um mundo autônomo, denominado mundo do texto. Neste mundo, entretanto, é possível perceber as operações imaginativas que a literatura efetua sobre o real (CONCEIÇÃO, 2013, p. 27)

 

Portanto, se considerarmos os elementos temporais e espaciais os quais o nosso autor estava inserido (relevância histórica), bem como suas influências literárias (Dante, Voltaire, Shakespeare, Victor Hugo, Edgar Allan Poe, entre outros), resta-nos enfatizar nitidamente a impossibilidade de se colher, através da leitura de suas obras, vereditos conclusivos ou percepções definitivas que venham alçar uma ideia de verdade última das coisas. Sabe-se que, para Machado de Assis, as “tentativas repetidas de acesso ao mundo verdadeiro são tentativas fracassadas. Quando se chega ao ápice de tal odisseia – a cisão entre mundo verdadeiro e mundo aparente – se inicia um processo que culmina na ruína Daquele que concentrava em si todo conteúdo ontológico e divino do mundo em si: Deus” (CASANOVA, 2003, p. 194 apud CONCEIÇÃO, 2013, p. 31).

Cabe ainda ressaltar que para Paul Ricoeur, na sua obra “A metáfora viva”, o mito de Adão representa a universalidade do mal, e Adão representa, deste modo, a humanidade toda. Neste sentido, observamos semelhanças com a percepção de Tillich, visto que

 

o próprio movimento expressionista foi muito caro a Paul Tillich não porque se configurava com uma degenerada (grifo do autor) expressão artística, mas porque era portador de elementos que, através da desfiguração da superfície do real, representavam a restauração do poder do simbólico e a busca pelo fundamento da realidade, num momento específico e historicamente construído. Seria a religião, por meio das expressões criativas do ser humano, o estado em que o ser humano passaria ser tomado por algo incondicional, sagrado e absoluto, em suma, sua preocupação última. A religião, se vista pelas lentes tillichianas, deixaria de ser um lugar de enraizamento de sistemas simbólicos rígidos ou de ritos para se tornar o espaço mesmo de nossa preocupação suprema. (CONCEIÇÃO, 2013, p. 76)

 

Contudo nossa reflexão não se paute numa ordem puramente teológica agnóstica ou alguma religiosidade entrelaçada com aspectos ateístas, podemos sugerir que o bruxo do Cosme Velho buscou vingar-se do deus forjado pelo consciente coletivo, vingança arquitetada através de um doce, salpicado em doses homeopáticas na teologia cristã, e recheado de uma “preocupação suprema” e, por que não, sublime. Mas engana-se quem pensa que o autor do conto Adão & Eva contrapunha-se a ideia de espiritualidade ou até mesmo a uma filiação religiosa:

 

Entretanto ia-me afeiçoando à ideia da Igreja; brincos de criança, livros devotos, imagens de santos, conversações de casa, tudo convergia para o altar quando íamos à missa, dizia-me sempre que era para aprender a ser padre, e que reparasse no padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa, brincava de missa – um tanto às escondidas, porque minha mãe dizia que missa não era cousa de brincadeira. Arranjávamos um altar, Capitu e eu. Ela servia de sacristão, e alterávamos o ritual, no sentido de dividirmos a hóstia entre nós, a hóstia era sempre um doce (grifo nosso). (ASSIS, Dom Casmurro, cap. XI – A Promessa)

 

Pois que, mesmo diante de um deus morto, “não o priva nem do seu poder nem da sua autoridade infinita, nem mesmo da sua infalibilidade: morto, ele é ainda mais terrível, mais invulnerável, num combate onde não existe mais a possibilidade de vencê-lo” (BLANCHOT, 1997, p. 15-16 apud CONCEIÇÃO, 2013, p. 90). Por mais contundente e exposto (expressionismo) que se apresenta uma possibilidade de vingança ao deus conceitual, na criatividade artística nem a morte se torna realidade, mas a vida, com sua bela complexidade.

A exemplo da personagem machadiana, o juiz de fora, também trocaríamos o divino por um prato de doce, propiciando, literalmente, uma “doce vingança”, ou nos dobraríamos ao encanto, como o bruxo do Cosme Velho, de extrairmos do texto bíblico o néctar: a beleza trágica?

 

PONTOS DE REFLEXÃO:

- A união entre o frei (teologia) e o juiz de fora (inventividade criativa – realismo fantástico);

- Alusão ao livro de Jó, onde há uma onisciência evidente em Deus, enquanto que satanás opera a maldade, porém, sob a observância e autorização divina;

- Alusão ao fato de que, se Adão e Eva tivessem ido para o céu, então as pessoas que se encontravam ao redor da mesa tinham como filiação satanás; e também uma suposta alusão de que o “mundo jaz no maligno” (1 Jo 5:19), confluindo com a ideia do texto 2 Co 4:4: “nos quais o deus deste mundo (o príncipe deste século) cegou o entendimento dos incrédulos, para que não lhes resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus”.

 

 REFERÊNCIAS

 

ANTUNES, Benedito & MOTTA, Sérgio Vicente. Machado de Assis e a crítica internacional. São Paulo: UNESP, 2009.

BLANCHOT. Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

CASANOVA, Marco Antonio. O instante extraordinário: vida, história e valor na obra de Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da. Teologias e literaturas 3 – Aspectos religiosos em Machado de Assis. São Paulo: Fonte Editorial, 2013.

MACHADO DE ASSIS, José Maria. Várias estórias. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Loyola, 2000.

TILLICH, Paul. Teologia de la cultura y otros ensayos. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1974.



[1] Alusão ao conceito nietzschiano da “morte de Deus”, abandono dos valores sagrados, e também de um certo antagonismo à alienação religiosa promovida pelo cristianismo institucional, vigentes na época.

[2] A intensão daquele que vos escreve, no tocante à terminologia em questão, é salientar uma das preocupações possíveis do autor, quanto às características da época em que viveu, como por exemplo, um cientificismo pragmático e determinismos sociais herdados da era moderna, que outrora promoveria catástrofes inéditas como as Grandes Guerras Mundiais e outras tragédias não menos sangrentas, oriundas de fundamentalismos e ideologias precursoras de exclusivismos notavelmente destruidores e genocidas.

[3] Filósofo francês (1913-2005) que contribuiu para a linguística, psicanálise, fenomenologia e hermenêutica, e interessou-se por questões envolvendo o existencialismo cristão e teologia protestante (influenciado pelo suíço Karl Barth). Além de órfão de mãe e de pai (este morreu em conflito bélico em 1915), foi prisioneiro pelos nazistas na Segunda Guerra, passando por dois campos de concentração.

[4] Teólogo suíço, cuja abordagem coaduna com as percepções de Paul Ricoeur, referente fenomenologia como instrumento metodológico para a Teologia.

[5] Na obra “Os Sertões”, Euclides da Cunha tece uma análise sobre o movimento organizado por Antônio Conselheiro, considerando-o como patologia social, ou seja, seguindo em linhas parecidas com os de Raimundo Nina Rodrigues, um médico que fundamentava suas pesquisas sobre a violência e o banditismo social em vistas da análise de crânios dos representantes populares dos movimentos sociais.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Bob Dylan, o outsider profeta, poeta e visionário

                                                                       fonte: A Z Quotes

 
Quem se lembra da canção "Dignidade" de uma banda curitibana que tocava muito nas rádios, em fins da década de 90, banda chamada Sr. Banana? Para quem não conhece, aí vai um trechinho: 

"...Ê dignidade, foi se embora prá onde. Ninguém sabe onde se esconde. 
Êiê  dignidade, foi se embora prá onde. Ninguém sabe onde se esconde.                                 
Dignidade é o sentimento inexistente no coração dessa gente que não sabe seu poder.
O problema é a pobreza que invade a cidade que não pára que não para  de crescer.
Passando fome não espere que um homem tenha capacidade de refletir e opinar.
Ficando muito mais fácil prá quem domina já que o povo se escraviza prá poder se alimentar."

Sabe-se que o problema da dignidade confronta o espírito do povo brasileiro. E há quem diga que na terra do Tio Sam a dignidade também acha-se escondida, mas há também os que nem se preocupam em procurá-la.
Robert Allen Zimmerman (nome hebraico: Zushe ben Avraham) ou artisticamente chamado Bob Dylan lançou esta música muito tempo depois de escrevê-la, ou seja, num terceiro volume de uma coletânea, em 1994.
Vale lembrar que o visionário poeta do Folk Rock já tivera um encontro com o cristianismo no ano de 1978; fato que causou muita consternação por parte de seus fãs, que imaginavam o abandono do músico aos palcos ou a sua migração para o mercado gospel. Mas, nem uma, nem outra opção, e sim três álbuns maravilhosos (Slow Train Coming, de 1979, Saved, de 1980 e Shot of Love, de 1981). Anteriormente, em 1975, já havia lançado um álbum repleto de profundidades fundamentais, o consagrado Blood on the Tracks
Durante seus dias em Dinkytown, Zimmerman passou a chamar de "Bob Dylan". Na entrevista concedida em 2004, Dylan disse: "Você nasce, sabe, com nomes errados, pais errados. Digo, isso acontece. Você se chama do que quiser se chamar. Este é o país da liberdade"... Em sua autobiografia, Crónicas, Vol. 1, Dylan escreveu sobre a mudança de nome:

"Eu havia visto alguns poemas de Dylan Thomas. A pronúncia de Dylann e Allyn era parecida. Robert Dylan. A letra D tinha mais força. Entretanto, o nome Roberto Dylan não era tão atraente como Roberto Allyn. As pessoas sempre haviam me chamado de Robert ou Bobby, mas Bobby Dylan me parecia vulgar, e além disso já haviam Bobby Darin, Bobby Vee, Bobby Rydell, Bobby Neely e muitos outros Bobbies. A primeira vez que me perguntaram meu nome em Saint Paul, instintiva e automaticamente soltei: 'Bob Dylan".

Sem delongas, segue a letra da bela canção:

Dignity

Fat man lookin' in a blade of steel
Thin man lookin' at his last meal
Hollow man lookin' in a cottonfield
For dignity
O gordo procurando em uma lâmina de aço,
O magro procurando sua última refeição,
O homem vazio procurando num campo de algodão,
por dignidade.

Wise man lookin' in a blade of grass
Young man lookin' in the shadows that pass
Poor man lookin' through painted glass
For dignity
O sábio procurando numa lâmina de grama,
O jovem procurando nas sombras que passam
O pobre procurando através do vidro pintado
Por dignidade.

Somebody got murdered on New Year's Eve
Somebody said dignity was the first to leave
I went into the city, went into the town
Went into the land of the midnight sun
Alguém foi assassinado no Réveillon
Alguém disse que a dignidade é a primeira a partir
Eu fui até a cidade, fui até a vila
fui até a terra do sol da meia-noite

Searchin' high, searchin' low
Searchin' everywhere I know
Askin' the cops wherever I go
Have you seen dignity?
Procurando acima, procurando abaixo,
Procurando em todos os lugares que eu conhecia
Perguntando aos guardas de onde quer que eu fosse:
Vocês tem visto a dignidade?

Blind man breakin' out of a trance
Puts both his hands in the pockets of chance
Hopin' to find one circumstance
Of dignity
O cego saindo de um transe
coloca suas mãos nos bolsos
esperando encontrar uma circunstância
de dignidade
 
I went to the wedding of Mary-lou
She said ÒI don't want nobody see me talin' to you?
Said she could get killed if she told me what she knew
About dignity
Eu fui para o casamento de Mary-lou
Ela disse: Eu não quero que ninguém me veja conversando com você.
Ela disse que poderia ser assassinada se me dissesse que sabia
sobre a dignidade
 
I went down where the vultures feed
I would've got deeper, but there wasn't any need
Heard the tongues of angels and the tongues of men
Wasn't any difference to me
Eu desci para onde os abutres se alimentam
eu poderia ter ido mais fundo, mas não havia necessidade
Ouvi as línguas dos anjos e as línguas dos homens,
não fazia diferença para mim
 
Chilly wind sharp as a razor blade
House on fire, debts unpaid
Gonna stand at the window, gonna ask the maid
Have you seen dignity?
O picante vento afiado como uma lâmina.
Casa em chamas, dívidas não pagas
Estarão na janela, perguntarão à governanta:
Você tem visto a dignidade?

Drinkin' man listens to the voice he hears
In a crowded room full of covered up mirrors
Lookin' into the lost forgotten years
For dignity
O homem bebendo escuta a voz que ele ouve
uma sala lotada cheia de espelhos virados para cima
olhando para os perdidos e esquecidos anos
por dignidade
 
 
Met Prince Phillip at the home of the blues
Said he'd give me information if his name wasn't used
He wanted money up front, said he was abused
By dignity
Encontrei Príncipe Phillip na casa do blues
Disse que me daria a informação se seu nome não fosse mencionado
Ele queria dinheiro, disse que foi abusado
pela dignidade

Footprints runnin' cross the sliver sand
Steps goin' down into tattoo land
I met the sons of darkness and the sons of light
In the bordertowns of despair
Pegadas correndo pela areia prateada
Passos descendo para a terra das tatuagens
Eu encontrei os filhos da escuridão e os filhos da luz
Nas fronteiras do desespero
 
Got no place to fade, got no coat
I'm on the rollin' river in a jerkin' boat
Tryin' to read a note somebody wrote
About dignity
Não consegui um lugar para desvanecer não consegui um casaco,
Estou no rio rolante num barco repuxado
Tentando ler a nota que alguém escreveu
sobre a dignidade
 
Sick man lookin' for the doctor's cure
Lookin' at his hands for the lines that were
And into every masterpiece of literature
for dignity
O homem doente procurando pela cura do doutor
Procurando em suas mãos, para as linhas que ali estavam,
e para cada obra de literatura
por dignidade.
 

Englishman stranded in the blackheart wind
Combin' his hair back, his future looks thin
Bites the bullet and he looks within
For dignity
Ingleses encalhados no frio vento
Penteando seus negros cabelos para trás seu futuro parece estreito
Ele morde a bala e olha para dentro
por dignidade

Someone showed me a picture and I just laughed
Dignity never been photographed
I went into the red, went into the black
Into the valley of dry bone dreams
Mostraram-me uma imagem e eu apenas gargalhei:
A dignidade nunca foi fotografada.
Eu fui até o vermelho, e fui até o preto
Até o vale dos sonhos de ossos secos

So many roads, so much at stake
So many dead ends, I'm at the edge of the lake
Sometimes I wonder what it's gonna take
To find dignity
Muitas estradas, muita coisa em jogo
Tantos impasses, estou na margem de um lago
As vezes me pergunto o que ele fará
para encontrar a dignidade.

 
 

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

ESTREIA-"Rock of Ages", com Tom Cruise, faz viagem musical a 1980

ESTREIA-"Rock of Ages", com Tom Cruise, faz viagem musical a 1980 (clique para ver na íntegra)

"...limpinho e sem gosto". Essa era a verdadeira imagem que tinha a idéia de "beatitude" diante do olhar dos 80's. Engraçado que, enquanto os 50's buscavam a tal beatitude, mas de maneiras um tanto diferentes, o ideário dos 80's forçava os ferrolhos para atirar a "hipocrisia transviada de beatitude" para fora de suas moradas!
Muito interessante viver um pouco da nostagia da geração dos 80's, ou seja, this is my generation, babe!

quarta-feira, 11 de abril de 2012

À Caminho do eu-puro



"Aqueles que acreditam que crêem em Deus, mas sem paixão em seu coração, sem angústia mental, sem incertezas, sem dúvidas, e às vezes até mesmo sem desespero, crêem apenas na idéia de Deus, mas não no próprio Deus." 
(Miguel de Unanuno, 1864-1937, do livro O Sentido Trágico da Vida nos Homens e nas Nações).

Promessas de salvação surgem de experiências humanas, em circunstâncias extremas, brotando através de esperanças de redenção, culminando eclodir no caminho da Cruz: apoteose da consolidação dos tempos por meio de um homem: o "Filho do Homem". Mas o caminho da Cruz não dá prioridades para realização de desejos naturais, tampouco se dobra a instintos demasiado humanos!
Existe um abismo divisório, que se posiciona entre o cristianismo religioso e a espiritualidade cristã. Tal abismo pode ser visto, ou até mesmo vivenciado no uso dos Salmos, com ressonâncias nas experiências humanas (por exemplo confusão, raiva, medo, ansiedade, depressão, alegria incontida). sua aderência na alma humana impulsiona a extinção do fingimento cotidiano, contrariando o positivismo utópico de que "vivemos no melhor dos mundos".* 
Quem ousa percorrer esse Caminho apropria-se de uma fé corajosa, que é ambientada por enfrentamento de mundo como ele é. Tal caminhada nos move abandonar toda a ostentação febril, as sutilezas do fogo fátuo, do engenhoso conforto, das enganosas aparências. Os Salmos também nos inspira refletir que, em se tratando de espiritualidades, não há restrições quando invocamos o Deus Vivo, quando nos achegamos diante do Seu assombroso pulsar em nossa alma. Esse pulsar que tende desconstruir ranços adquiridos pelo caminho, abandonando resquícios de subserviência instintiva e narcísica. 
O irônico disso é que a vida moderna impõe momentos de fé voltados ao "pensamento positivo", pautado em oráculos ou gurus modernos da administração, travestidos com roupagem pseudo-angelical. Enquanto que o caminho da fé espiritual é bem distinto. 
Mas o comportamento religioso tem se tornado uma negação à realidade; deuses são recriados a partir de redemoinhos de vaidades, de desejos e ansiedades interiores. No âmago das vivências corriqueiras, há uma ordem apelando para a realização de desejos. 
Diante de tais comportamentos, Marx viu deus funcionando para os religiosos como um comprimido enorme contra a dor (o equivalente moderno do seu ópio); para Freud esse deus dos religiosos oscilava entre um gigante ursinho de pelúcia e um despótico diretor de escola. Esses dois homens receberam notoriedade como protagonistas de uma nova era, com proposta libertadora através da ciência; embora Freud tornou-se cada vez mais pessimista em relação ao futuro da humanidade, talvez por ter vivido até a Grande Guerra e presenciado uma era nazista. Contudo, ambos consideraram a religião como um obstáculo ao seu programa de libertação humana, porque ela ocultava as origens causadoras das aflições humanas.
Sabe-se que em cada um dos casos acima a tradição profética da Bíblia parece ter sido a motivação inconsciente deles, mediante as tentativas de transformar a consciência coletiva. A crença num destino mais elevado para a humanidade, o conceito da alienação humana, a noção (em Marx) de haver propósito na história e o triunfo final da justiça... Tudo isso são reminiscências de uma cultura que, em algum momento, se achava profundamente influenciada por uma visão bíblica de mundo. Deste modo, Marx se utilizou do argumento de Feuerbach, crendo que a crítica à religião é o fundamento para toda crítica social, de modo a pôr luz sob toda e qualquer possibilidade de inversão de valores sociais causados pela religião. Feuerbach dizia que: "Para enriquecer a Deus, o homem tem que se tornar pobre; para que Deus seja tudo, o homem tem que ser nada.” Neste detalhe, podemos lembrar de um conceito nietzschiano de que o niilismo positivo (ou reativo) pode levar a humanidade para a superação de si mesma, através da dissolução dos valores pré-estabelecidos, e o surgimento de uma responsabilidade individual para com os efeitos da dissolução (antivalor). 
Nós nunca compreenderemos Nietzsche se não considerarmos que ele foi criado num ambiente judaico-cristão, sobretudo, protestante, e que nas primeiras experiências, sua vida era pautada numa visão moral e estética, onde os seus valores frequentemente eram, mesmo de forma inconsciente para ele, bíblicos. A característica linguagem de redenção humana: o “Novo Homem”, é tomada diretamente da teologia cristã.
Mediante inclinações semelhantes às de Nietzsche, o jovem Marx também vivenciou a religiosidade judaico-cristã e não se sentiu muito à vontade para levá-la a sério, apesar de uma breve fagulha expressa: "A união com Cristo consiste na mais íntima comunicação com ele, tendo-o diante de nossos olhos e em nosso coração, e sendo assim tomados pelo mais elevado amor por ele, ao mesmo tempo em que voltamos o nosso coração aos nossos irmãos, com os quais ele nos ligou, e por quem ele também se sacrificou..." (Karl Marx, aos 17 anos de idade, no ensaio: A união dos crentes com Cristo de acordo com João 15:1 - 14).
Nesse ensaio Marx tomou como base o que um dos pais da igreja, João Crisóstomo (c. de 377-407), corajosamente argumentou aos nobres de Milão: "Isso também é roubo, não dar aos outros o que se possui. Talvez esta afirmativa soe surpreendente para você, mas não se surpreenda... Assim como um oficial no tesouro estatal, se ele negligencia em distribuir para quem lhe tenha sido ordenado, mas retém para si por sua própria indolência, tem que sofrer a pena, sendo posto à morte, da mesma forma o rico é como um mordomo do dinheiro que possui para ser distribuído aos pobres. Ele é dirigido a distribuí-lo a seus servos que estejam em necessidade. Desse modo, se ele gastar consigo mesmo mais do que sejam suas necessidades, ele terá que pagar a mais dura pena depois. Pois os seus bens não são propriedade sua, mas pertencem a seus servos... Rogo que você se lembre disso sem falta, que não compartilhar os bens com os pobres é roubar os pobres e privá-los de seu meio de vida; nós não possuímos nossos bens, mas sim os deles. (João Crisóstomo, Sobre a Riqueza e a Pobreza).
Semelhantemente o grande Pai da Capadócia, Basílio da Cesaréia (c. de 329 - c. de 379) repreendeu cristãos que eram ricos com uma linguagem que é ouvida com maior frequência nos piquetes das fábricas do que em templos religiosos: "O pão que você guarda consigo pertence ao faminto; o agasalho que você deixa dentro do seu armário, ao desnudo; os sapatos que você possui e que estão apodrecendo, ao que está descalço; o ouro que você tem muito bem guardado, ao necessitado. Portanto, todas as vezes em qeu você teve condições de ajudar alguém, e recusou-se a isso, você então lhes fez um mal". (Basílio da Cesaréia, em discurso proferido em Ávila).
C. S. Lewis foi muito feliz em seu comentário: "Fale comigo sobre a verdade da religião, e vou ouvi-lo com alegria. Fale comigo sobre o dever que a religião impõe, e vou ouvi-lo com submissão. Mas não me venha falar sobre as consolações da religião que vou achar que você está por fora." (C. S. Lewis, em Um Pesar Observado).
Quando encontramos oportunidade de falar ao próximo, devemos discernir o que o coração do próximo almeja escutar, ou seja, focar no que o próximo necessita e não o que o nosso ego ou moralidade tem a dizer.
Há nítido entorpecimento que tenta desviar nossos passos em direção ao caminho da cruz sob uma sutil presunção, talvez errônea, sobre o que significa santidade e espiritualidade. Contudo, o Espírito ainda teima admoestar: "A verdadeira religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo" (Tiago 1:27).
Acredita-se que a grande luta de Sócrates, na Grécia Antiga, tenha sido contra os sofistas: aqueles que tinham por princípio comercializar o conhecimento, persuadindo a sociedade comprar suas ideias, mesmo que despojadas de sabedoria. Porém, a sabedoria nada mais é do que o conhecimento compartilhado, e útil para a edificação e construção do pensamento.
O vácuo criado pela perda da criação artística e da experiência responsiva é preenchido ultimamente no mundo moderno. O secundário tornou-se o nosso narcótico. A humanidade alfabetizada é assolada diariamente por milhões de palavras impressas, transmitidas pelo rádio e vistas nas telas de TV com respeito a livros que ela nunca vai abrir, sobre músicas que não vai ouvir, sobre obras de arte que nunca vai contemplar. Um zumbido perpétuo de comentários estéticos, de julgamentos precipitados, de expressões pomposas pré-fabricadas preenche-nos o ar. Presumivelmente, a maior parte de toda fala artística ou reportagem literária é apenas lida por alto e não propriamente lida, mas é ouvida, porém sem se prestar a atenção... Como sonâmbulos, somos guardados pelo sussurro entorpecente do jornalístico, do teórico, em relação ao frequentemente estridente e imperioso fulgor de uma completa presença" (STEINER diz no livro: Presenças Reais: Há Alguma Coisa no Que Dizemos?)
Quando o assunto é a Beleza da Soberania e da Sabedoria divina, a coisa fica um tanto mais confusa, para alguns que imaginam um deus a serviço da criação, um deus de saia, como disse o cantor Cazuza na música "Cobaias de Deus". O sofrimento cristaliza, como nada mais, os dilemas e os pesadelos de uma vida sem Deus. É um nervo inflamado que, se tocado, desperta uivos de raiva e angústia, especialmente hoje em dia. 
Certamente, quando nossos órgãos são transplantáveis; quando temos como comer sem engordar, copular sem procriar, dar um brilhante sorriso sem estar feliz; certamente o sofrimento deveria ter sido banido de nossa vida. Ter que continuar a sofrer, e ver outros sofrendo, isso para nós é uma afronta; e a divindade que, tendo o poder de interromper o sofrimento, ainda permite que seja contínuo, essa divindade só pode ser monstruosa, não um Deus amoroso. É o mesmo de quando um equipamento emperra e fica com defeito, nós procuramos pelo fabricante ou o mecânico para xingar. Aos olhos daqueles que veem os homens como máquinas, Deus é o fabricante, e o mecânico é o seu sacerdote." (adaptado de M. Muggeridge, em Algo Belo para Deus).
Como muito bem disse o teólogo e filósofo Emil Brunner no seu artigo "O homem revoltado": Em cada civilização, em cada período da história, é verdade dizer: Mostrem-me o tipo de deus que vocês têm, e eu lhes direi que tipo de humanidade vocês possuem.
Com a finalidade de ressaltar este pensamento, podemos apropriar do que disse o jovem poeta inglês Thomas Thraherne (1637-1674): - "até que o mar flua em suas veias, até que você se revista dos céus, e seja coroado com as estrelas; e perceba que você é o único herdeiro de todo o mundo; e, mais do que isso, porque todos os homens são igualmente esse único herdeiro, tal como você. Você não poderá usufruir do mundo até que você cante e alegre-se e tenha o prazer em DEUS, tal como os avarentos se alegram com o ouro, e os reis com o cetro." Esse pensamento nos ajuda impedir decairmos para a adoração do mundo em si, explorá-lo para nossos próprios fins egoístas, como o fazem religiosos proselitistas e ambiciosos cujas mentes já foram entorpecidas pelo poder.
Devemos ter em mente que não foram os pecadores, mas os “religiosos” e os “donos do poder” quem rejeitaram o Salvador. Assim, o escritor bíblico relatou para que “saiamos, pois a ele, fora do arraial, levando o seu vitupério. Na verdade, não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a que há de vir” (Epístola aos Hebreus 13:13-14). Os discípulos de Jesus são chamados para ir onde Jesus está
Há muito tempo atrás, um homem de conduta religiosa permitiu-se desconstruir, colocar em ruínas os rudimentos e falsa espiritualidade, outrora enxertados nele através de uma sociedade hipócrita, movida por barganhas. Ele dizia assim: "Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado... Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te vêem. Por isso, me abomino e me arrependo no pó e na cinza (livro de Jó 42:2, 5-6). Quando há espaço para desconstruções, há ruptura entre o eu-si e o eu-nós, possibilitando enxergar Naquele em que tudo e a todos criou, uma possibilidade de vida plena. 
Foi o que Emerson tentou ressaltar nos seus ensaios, foi o que Zamyathin traduziu na sua ilustre e inédita obra “Nós”. Foi o que tantos outsiders (o pregador George Fox, Walt Whitman, David Henry Thoreau, o visionário T.S. Eliot, Dostoievsky, Pasternak, alguns poetas e escritores da geração beat, por exemplo) tentaram expressar à humanidade. Com seus uivos eletrizantes proferiram a uma geração monótona e confortavelmente hipócrita e perversa, cujas consciências estavam já entorpecidas, entranhadas em seus vãos deleites, cegos e estúpidos.
É próprio da dominação hipócrita laçar seus tentáculos para além das cercanias, um movimento a um só tempo de expansão e dependência. Representa, ao nível comunitário, o protótipo da exploração do homem pelo homem. A tentativa em reconquistar o domínio perdido, entregue ao adversário, no Jardim do Eden. Enquanto isso, o outsider vê esta tragédia por outros ângulos, busca outro raciocínio, outra visão, outra conduta.
A vontade de potência (ou domínio) não é uma expressão qualquer. Realiza-se sempre às expensas de alguma vítima, seja os que exercem o poder, ou os que cegamente consentem na dominação, um vínculo sádico de dependência. Até aí, tudo bastante simples. Entretanto, insólitos são os caminhos de uma psicologia prolongadamente silenciada: com o passar do tempo (o tempo é fundamental) observa-se no colonizado um esmaecimento da revolta, chegando quase sempre a uma submissão voluntária e algumas vezes até a uma docilidade pervertida. A exploração evoca sensualidade, a opressão ternura. A vítima passa verdadeiramente a amar o dominador, a depender dele; renuncia de bom grado a sua consciência reflexiva; abandona sem hesitação as suas aspirações, norteando seu procedimento conforme os ideais de seu dominador: o que cabe fazer, como deve pensar, o que deve desejar (um exemplo é o selvagem, personagem do livro Admirável Mundo Novo, de Huxley). Do ato de obediência às normas dominadoras extrai intensa sensação de proteção (cobertura) e de bem-estar, podendo, tranquilo de consciência, dormir um ano sem as culpas e os remorsos das desobediências. A “boa consciência” é o bem supremo da mente colonizada e uma vez estabelecida completa-se o processo imperialista de colonização, estabilizando-se as primeiras instabilidades. Estabelece-se assim um vínculo masoquista de dependência no colonizado, e pelas mesmas razões, só que invertidas às do imperialista, poderemos também dizer que todo o colonizado é um “drogado”.
Dependendo do colonialista, desta dependência extrai o prazer, desse prazer extrai o orgulho, com este orgulho nega sistematicamente os efeitos sinistros dessa dependência sobre seu corpo existencial.
Podemos então concluir que todo o universo colonialista está caracterizado pela inevitável “narcotização” de seus participantes, sejam eles colonizados ou colonizadores. Se para o colonizador as “drogas” são as regalias evidentes do processo, pra os colonizados as “drogas” são os privilégios do infantilismo psicológico.
A dialética colonialista vem associada, originalmente, à exploração entre nações; mas pode, por extensão, aplicar-se às relações de exploração dentro de um país, de uma cidade, de uma corporação, de uma religiosidade, de uma família e, mesmo, de uma personalidade.
Evitando uma possível reação por parte do colonizado, tenta-se mascarar a realidade, encobrindo as evidências, confundindo a verdade. Podemos dizer que a propaganda ideológica polui consciências, envenenando o conhecimento.
Deste modo, uma mesma produção cultural que num lugar ou numa época possa funcionar como agente de libertação e desalienação de consciências pode, noutro lugar ou noutra época, funcionar como um agente do entorpecimento e da alienação das consciências.
Alienação que justificaria o fato do homem submeter-se à escravidão. Essa capacidade de resistir vivo, mesmo como escravo, não pode ser explicada sem se recorrer ao poder da fé, do qual o poder do amor seria apenas uma subsidiária ou uma eventual encarnação.
Já foi dito que o prazer obtido pelos poderosos tem caráter sadomasoquista. Mas, como é sentido e vivido, esse tipo de prazer pode ser realmente considerado felicidade? Refiro-me à felicidade como fruto da apropriação indébita e da expropriação autorizada e impune, como aquela do ladrão que rouba de ladrão.
Para que o homem se permita substituir o prazer de viver pelo poder de ter, algo aconteceu antes em sua fisiologia e em sua psicologia natural e espontânea.
Para alguns, o prazer de viver pode ser traduzido por AMOR. Mas o que é amar, além daquilo que é explicado pela fisiologia e a biologia? Sente-se por ele, precisa-se dele, delicia-se nele, acaba-se por ele, morre-se por ele, mata-se por ele, enfim, mas não se sabe o que, de fato, é "ele"?
Será sempre catastrófico o resultado da utilização do amor a serviço do poder, seja autônomo, religioso ou político, porque manipulado dessa forma vai ocorrer, inevitavelmente, a destruição do próprio amor. Só a liberdade, a autonomia e a verdade nos ensinam a aceitar biologicamente e humanamente o tempo, o espaço e o amor pelas coisas vivas.
Assim, para pessoas “drogadas”, a esperança de vir um dia a ser feliz transforma-se, para eles, numa espécie de dependência narcótica. Essa dependência, pelo menos, os mantém aparentemente vivos, embora sem amor espontâneo algum, quer dizer, mortos, mas ainda “insepultos”, como diz nas escrituras: “Deixai os mortos sepultar os seus mortos” (Bíblia, Mt 8:22).
Diante do exposto, podemos considerar a ideia de que numa sociedade como tal, os mortos comandam os vivos, num processo de desvivência progressiva. Mas, paradoxalmente ainda nos cabe um recurso, o de acreditar que morremos, porém não desvivemos!
Mas é claro que as coisas não andam tão bem na aldeia. Alucinados e insaciáveis, os profetas da pseudofelicidade estão muito longe de se convencerem. Almejam a todo custo propagar a teoria da necessidade de dominação (vontade de verdade, que também pode ser definido como vontade de potência, conforme Nietzsche preconizou no seu livro Assim Falou Zaratustra), solapando a capacidade de raciocínio reacionário, dissimulando a espontaneidade de se amar.
A alegria de se amar está no modo simples e direto e gostoso de se expressar, no âmbito funcional, espiritual, físico, emocional, psicológico, afetivo, sensual, ético e ideológico. Como tal, deve ser, por natureza, sempre lábil, instável e furtiva, como acontece com as coisas que não existem por si próprias.
E isto provém do Espírito da alegria, coisa tão incerta como o vento, que é tão forte que às vezes vira tufão, outras parece brisa suave, que pode vir do sul ou do norte, do leste ou do oeste, mas que vem, queiramos ou não, do Criador, e na hora que bem entender.
É amor espontâneo, é a vida numa pulsação, com a qual o ser vivo expressa sua existência. Quando nos desprendemos, há compartilhamento de experiências e ideias, há grandes chances de se produzir saberes, vivências que se entrecruzam, entronizando aromas agradáveis na alma. Jesus Cristo abriu caminho para esse compartilhar. E, séculos mais tarde, um pensador russo alertou que "a felicidade só é real quando compartilhada".** 

* Alusão à crítica de Voltaire, contida no livro "Candido ou O Otimismo".
** Alusão ao escritor russo Liev Tolstoi.